Sinopse da portela para o carnaval 2023

Sinopse da portela para o carnaval 2023

30 de Junho, 2022 Não Por portaldosambarj

O azul que vem do infinito

 

Era o inicio da década de 1920 quando cheguei ao vale do rio das Pedras, na
localidade há pouco tempo conhecida como Oswaldo Cruz. Desembarquei de um trem vindo
da Saúde, acompanhado de minha mãe e minha irmã. Eu ainda não sabia, mas trazia comigo
uma missão. Um propósito que se iniciava ali, nas terras do antigo engenho do Senhor Miguel
Gonçalves Portela, mas que não conheceria os limites geralmente impostos pelo tempo e pelo
espaço. Seria algo perene, imortal, como parecia ser a alegria nas concorridas festas de Dona
Esther, onde entendi que deveria elevar o samba e a cultura popular a um patamar jamais
alcançado. Então, com as graças de Nossa Senhora da Conceição e São Sebastião, ou, como
queiram, Oxum e Oxóssi, eu, Caetano e Rufino unimos nossas mãos e tivemos um sonho.
Imaginamos um mundo azul e branco que não teria fronteiras, que se estenderia para além
dos limites de nossas vidas terrenas. Fundamos o “Conjunto Carnavalesco Oswaldo Cruz”,
primeiro nome de nossa criação. O primeiro nome da Portela! Era algo simples, pequeno,
mas, logo no primeiro desfile oficial, fomos campeões deixando uma mensagem que, na
verdade, tratava-se de uma profecia: “O samba dominando o mundo”. Isso foi há muito tempo.
Hoje, Caetano, o que abre nosso cortejo no carnaval celestial é o bater das asas do Divino
Espírito Santo. Lá embaixo, eles ainda fazem águia de isopor.

Faz muito tempo, Professor, mas eu lembro que tu me deste a honra de defender o
pavilhão daquele primeiro campeonato. Eu também estava ao seu lado quatro anos depois,
quando a Praça Onze se encantou com “Teste ao samba”, a primeira vez em que uma escola
de samba apresentava fantasias, alegorias e samba representativos do enredo. Sua missão
passou a ser a minha, e o sonho de vocês, fundadores, aos poucos ganhava forma. Eu vivi
intensamente os “sete anos de Glória”. Sete vitórias seguidas, algumas delas em meio às
incertezas dos carnavais de guerra. Eu vi os sambistas se dividirem, brigarem, formarem
Associações diferentes, mas depois se unirem novamente. Vi as confusões de 1952, ano em
que não teve apuração, e, no carnaval seguinte, conquistarmos o supercampeonato com as
“Seis datas magnas”, tirando nota máxima em todos os quesitos. Hoje, em nosso carnaval
celestial, quando rodopio movimento as nuvens brancas, que em forma de espiral rajam o
azul do céu. Lá embaixo, eles ainda usam bandeiras de cetim.

Para rodar com o nosso pavilhão, menina, eu trouxe Vilma Nascimento, o Cisne da
passarela, que está lá por baixo. Comigo não tinha malandro que se criava. Eu herdei esta
missão e honrei cada dia da minha vida para cumpri-la. Fui tetracampeão, de 1957 a 1960.
Quando cantamos “Legados de D. João VI” e “Brasil Panteão de Glórias”, os sambas eram de
sua autoria, Candeia. Fomos campeões festejando o pintor “Rugendas” e usando violinos
para ilustrar o “Segundo casamento de D. Pedro I”. Nós apresentamos a obra “Memórias de
um sargento de milícias”, cujo samba foi escrito por aquele rapaz que está lá embaixo, o
Paulinho da Viola. Lembro-me da festa ao conquistarmos o título de 1970, “Lendas e
Mistérios da Amazônia”. No ano seguinte, Ary do Cavaco, você escreveu uma bela poesia homenageando a Lapa. Então, logo após exaltar “Macunaíma”, minha parte nesta missão se cumpriu. Vai, Betinho! É hora de um rufar de trovoadas. Lá embaixo, eles ainda fazem som batendo no couro de um surdo.

O Senhor sabe que eu fui o autor de Macunaíma, não sabe? Eu e a Clara cantamos
juntos na avenida. Esta também foi a minha missão. Eu compus “Hoje tem marmelada”,
samba com o qual fomos campões, e o antológico “Das maravilhas do mar fez-se o esplendor
de uma noite”, sucesso absoluto. Tudo bem, eu passei por outras escolas, mas sempre que
partia deixava meu coração na Portela, e para ela retornava. Nas minhas andanças, vi o
carnaval atrair turistas. Vi surgir o sambódromo! Aquilo que um dia foi pequeno se tornava as
Escolas de samba S. A. Eu vi Silvinho ser campeão cantando “Contos de Areia”. Em um lindo
amanhecer de carnaval, vi Dedé cantar a “pombinha da Paz”, e depois, anos mais tarde,
arrepiar a todos com um belo “Tributo à vaidade”. Vi o “azul” ser cantado em todas as suas
tonalidades! Eu vi o Noca, que está lá embaixo, sacudir a avenida com seu “Gosto que me
enrosco”. Hoje, para o nosso carnaval celestial, componho orações unindo os sentimentos
daqueles que expressam saudade. Lá embaixo, eles ainda estão limitados pelas letras
escritas num papel.

Eu sei como se compõe, aqui e lá embaixo. Fui o último a chegar cá em cima. Vivi o
que vocês só viram à distância. A parte que me cabia nesta missão foi levar a Portela para o
século XXI, batendo suas asas em um novo milênio. Eu vi nossa escola cantar o “Amor”. Vi
Madureira “subir o pelô” e revolucionar o gênero samba-enredo. Eu estava ao seu lado,
Falcon, quando você apontou para frente e todos o seguiram. Eu vi a imponência da Águia
redentora. Vi nossa escola cantar as “viagens”, e, em 2017, conquistar sua vigésima segunda
estrela: “Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse rio passar”. Liderei por décadas a
minha velha guarda, levando o nome de nossa escola para todo o planeta. Canta, Surica!
Canta que o samba dominou o mundo, cumprindo a profecia de nossos fundadores. O sonho
deles é realidade. Inspira cada jovem que agita suas bandeiras nas arquibancadas. Hoje,
sinto-me leve. Minha voz ecoa livremente pela eternidade. Lá embaixo, eles ainda usam
microfone e caixa de som.

Neste carnaval do centenário, quando a sirene da avenida tocar, não deixem de olhar
para cima. Nós estaremos na claridade que emana da lua, no brilho de cada estrela do
firmamento, no vento suave que toca seus corpos. Nós estaremos fantasiados daquilo que
vocês costumam chamar de natureza. A Portela é o nosso legado. Iluminaremos seus
caminhos, mas a missão agora é de vocês. A história da Portela é uma jornada atemporal. É
a saga de gerações que se sucedem no tempo. É um sonho que nos une ao infinito. Os
próximos cem anos nos aguardam.